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Foto do escritorFê Chammas

PRECISAMOS FALAR SOBRE COCÔ

MERDA ACONTECE, MAS PODEMOS ESCOLHER COMO LIDAR COM ELA.


*Texto publicado originalmente em 25/11/2017


Sou nascido e criado no interior de São Paulo, mas sempre fui bem urbanóide. Cresci com medo de insetos — a maioria eu já superei, mas as baratas ainda são um terror — , mania de higiene, mãos e pés sem calos e paixão por shopping centers.

Tenho me mexido pra fora desse lugar há algum tempo, como consequência da busca por diminuir os impactos da minha existência no planeta, processo que passa por simplificar a vida, me conectar com minhas reais necessidades, consumir menos e de maneira consciente e entender mais sobre os ciclos naturais e industriais dos quais sou parte — comida, roupas, transporte, tecnologia, cosméticos, lixo, urina e fezes.

Desde que tive contato com compostagem, banheiro seco e técnicas alternativas de saneamento e tratamento de esgoto, passei a refletir muito sobre minha relação com meus restos e, principalmente, com meu cocô.

A relação que tenho com cocô é tão louca que esses dias tive que fazer exame de fezes e percebi que queria estar usando um uniforme de astronauta para me proteger daquela massa altamente nociva à minha saúde enquanto fazia a coleta.

E o que faço com meu cocô em São Paulo é um absurdo.

Cago na água, um recurso que é sinônimo de vida e já está em falta em muitos lugares do planeta; uso mais muitos litros d’água pra mandar o cocô embora; o destino dele também são águas, do Rio Pinheiros e Tietê; e pronto, problema terceirizado. Não preciso mais pensar nisso.

Aí acabo com a vida aquática desses rios, que só voltam a ter vida habitando suas águas centenas de quilômetros depois e, de quebra, fico com uma paisagem horrível e um odor bem desagradável no lugar em que vivo.

E isso é em São Paulo, a maior cidade da América Latina e o principal centro econômico do Brasil. De acordo com o estudo da OMS/UNICEF, Progress on Sanitation and Drinking Water, somente 50,7% da população brasileira tem seu esgoto coletado e só 40,2% do esgoto é tratado — e, nesses, ainda tem uma ineficiência e um desperdício de água absurdos.

Dá pra imaginar o tamanho do impacto que temos na natureza e me vejo enroscado em um sistema gigante que me obriga a funcionar dessa maneira.

O livro The Humanure Handbook — A Guide to Composting Human Manure (em livre tradução, O Manual do Estercumano — Um Guia para Compostar Esterco Humano) parece ensinar soluções práticas e já entrou na minha lista de livros a serem lidos.

 

Tô no começo de uma viagem pra conhecer modos de vida alternativos e aprender sobre práticas que questionem e quebrem os sistemas que considero nocivos e opressores na sociedade atual.

Meu primeiro destino foi a Ecovila El Nagual, uma RPPN — Reserva Privada do Patrimônio Natural — aos pés Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro, onde os donos, a argentina Mariana e o alemão Eraldo, se estabeleceram em 1989 e se comprometeram com uma vida austera e sustentável, buscando produzir sua comida, captar água, tratar seu lixo e seu esgoto e construir suas estruturas de moradia e convivência cuidando da natureza, não só através de práticas que não excedam as capacidades naturais locais, mas também trabalhando para estimular sua recuperação onde necessário e possível.

Vim aqui buscar interagir com quem tem muita bagagem, colocar a mão na terra e sentir na pele o que é viver com ciclos naturais menores e estar mais próximo de seus começos e fins.


Que que há, velhinho?Todo dia cuidamos da horta, que dá de tudo: aipim, batata doce, inhame, rabanete, nabo, gengibre, cúrcuma, ginseng, alfaces, almeirão, rúcula, capuchinha, brócolis, salsa, cebolinha, coentro, manjericão, hortelã, abacaxi, mamão, banana, milho, feijão, vagem, abóbora, abobrinha, cenoura, tomate, quiabo, chuchu.


Limpamos canteiro, tirando gramas e capins que tomam conta da terra, plantamos sementes, transplantamos mudas, fazemos o manejo das plantas, adubamos, protegemos o solo do sol.

Antes de começarmos a cozinhar nossas refeições, caminhamos até a horta para ver o que está bom para ser colhido naquele momento. A partir daí, pensamos no cardápio do almoço. Consome-se pouquíssimas coisas empacotadas por aqui. Mas tudo que não é orgânico é separado para reciclagem e os vidros e entulhos até viram arte.


Fazendo mosaico com restos de garrafas de vidro e azulejos no muro da escola de Santo Aleixo, RJOs resíduos orgânicos tem três destinos diferentes: alimentos viram comida para os cachorros ou são compostados, para virar fertilizante pra terra, e o esgoto passa por um biodigestor, que processa a matéria e ainda gera o metano que alimenta o fogão usado na fábrica de velas artesanais que eles têm aqui.

“Na natureza não tem desperdício, tudo é reaproveitado.”

Um mantra por aqui é que “na natureza não tem desperdício, tudo é reaproveitado”. Folhas secas voltam pra terra como nutrientes. O tronco da bananeira mantém a umidade do solo. A cabeça do abacaxi que descascamos, a árvore da mandioca que colhemos e os palitos do manjericão que cortamos são replantados e seguem gerando vida.

Tudo tem sua função pra manter o equilíbrio do ecossistema e, como diz o Eraldo, você até “passa a gostar das aranhas quando aprende que elas são tuas melhores amigas contra os mosquitos”.

Semana passada, acabou o gás de um dos aquecedores de água daqui. Foi a deixa que o Eraldo precisava para nos propor uma aventura que nem ele tinha colocado em prática antes: construir um bioaquecedor — um aquecedor de água à base de composto orgânico.

A ideia é simples: durante o processo de compostagem que ele faz aqui, o interior da massa orgânica atinge temperaturas de cerca de 60° C e, portanto, poderíamos construir uma estrutura e fazer com que a água que chega no chuveiro passasse antes por dentro dessa massa.

Genial.

Aquecemos água a um custo quase nulo, só precisamos fazer a manutenção umas 3 ou 4 vezes ao ano, quando o composto já estiver pronto e a temperatura da massa baixar, e, de quebra, ainda produzimos matéria orgânica de altíssima qualidade para produção de alimentos.

A composteira é feita a partir da seguinte receita: uma camada de matéria orgânica — no caso, folhas picotadas; água para umedecer e uma solução natural com fungos para acelerar a decomposição; uma camada de pó de carvão; e, por fim, uma camada de bosta de vaca com água, soro de leite, pó de calcário e pó de osso.

Aí chegou um dos momentos mais importantes dessa experiência pra mim: mexer com merda.

Primeiro, abraçando e carregando os sacos de estrume. Depois, preparando a solução. E, então, fazendo a aplicação na composteira dezenas de vezes.

Comecei com muito nojo.

Cheio de dedos para pegar os sacos e mexendo a solução à distância. O processo foi ficando mais dinâmico e eu, por ser mais alto, fiquei encarregado de fazer a aplicação da merda na composteira, porque meu braço alcançava todos os lados do cilindro para distribuí-la bem.


Comecei o processo de maneira lenta e cautelosa. Até que virei o balde na composteira e percebi que seria difícil evitar que aquilo não respingasse por todo lado e, inclusive, em mim.

Mais rápido do que podia imaginar, já estava segurando o balde sem cerimônias e trabalhando com “aquilo” sem resistência. O trabalho se prolongou por dois dias e, ao acabar, limpei a mão, as botas e as roupas e a vida seguiu.

Tenho percebido que essa experiência mexeu com muita coisa dentro de mim.

Tá evidente que tenho que fechar meus ciclos, cuidando deles até o final. Mas, em geral, vejo a mim e a sociedade em que vivo muito pouco familiarizados com os impactos que geramos e com acesso dificultado aos processos de manuseio responsável de nossos dejetos.

Imagine só que linda seria a seguinte situação:

Os agricultores produzem comida, que extrai da terra os nutrientes fixados através de processos naturais. Nós comemos esses alimentos, que nos dão tudo o que precisamos para nos desenvolvermos e seguirmos vivos, saudáveis e ativos. E, então, depois que nosso corpo os processa e separa o que não vai utilizar, cuidamos da nossa urina e nossas fezes, compostando essa matéria e permitindo que ela volte como nutrientes para a terra, ajudando os agricultores a produzir alimentos e realimentando esse ciclo.

Essa ideia pode facilmente — e deve — extrapolar a matéria orgânica e chegar nos bens de consumo, passando por separar devidamente os lixos recicláveis — limpando e organizando tudo para facilitar o processo — e pelo descarte consciente de eltrodomésticos e eletrônicos para que suas partes voltem a ser usadas em outros produtos.

Mas, pra isso, temos que nos conscientizar como indivíduos e agir coletivamente.

Acredito que podemos construir um mundo onde seja tão simples descartar uma
geladeira ou um aparelho televisor quanto é fácil comprá-los hoje em dia.

E, mais do que somente conseguir executar essas mudanças, acredito que o processo até lá pode me trazer grandes aprendizados sobre a natureza e sobre mim mesmo.

Talvez, nesse processo, eu compreenda mais sobre o tempo da natureza, onde nada é imediato, e aí já não exista mais tanta ansiedade dentro de mim.

Também é possível que eu aprenda que, se os ciclos forem fechados, a natureza nunca tem fim, e eu passarei a enxergar caminhos e sofrer menos com a desesperança que me acomete vira e mexe.

Quem sabe, ainda, eu aprendo que, na natureza, cada mínimo elemento tem o seu valor e que o simples fato de existir vida é um milagre, e aí, talvez, eu já não tenha tanto medo e aversão à ideia de ter depressão.

Vejo que meu comportamento higienista em relação a meus dejetos se estende a minhas atitudes perante a vida. Dou descarga em muitos problemas que me assustam e terceirizo outros que não sei como resolver, mas os impactos disso atingem a outras pessoas imediatamente e voltam para mim em algum momento.

Nesse processo, acredito, ainda, ser possível aprender a lidar com meus supostos erros e falhas não como características determinantes da minha personalidade e degradantes do meu ser, nem como fardos de culpa e frustração a carregar ou coisas a evitar, mas como oportunidades de aprender sobre meus medos e padrões, para buscar me construir, com entrega e coração aberto, através da relação com o outro.

Cago todos os dias e quero que meu cocô vire fertilizante para devolvê-lo pra terra e gerar mais vida, em vez de deixá-lo exposto e gerar doenças ou despejá-lo em nossas águas.

Cometo erros com mais frequência do que gostaria — reajo a partir dos meus medos, tomo decisões precipitadas, ajo de maneira individualista, magoo e decepciono a quem amo. Mas tô buscando processar cada uma dessas experiências como ricos aprendizados sobre mim mesmo, pra adubar o solo do meu coração e permitir que dali germine mais amor.

Enfim, o fato é que merda acontece — literal e metaforicamente — e me parece que cabe a mim escolher o que quero fazer com isso.
 

Queria compartilhar também um fato curioso que aconteceu um dia depois dessa experiência de merda.

Toco violão há mais de quinze anos e nunca havia composto uma música — por diversas questões que tenho descoberto sobre minha relação com a criatividade.

Depois do café da manhã, peguei o violão pra tocar uma música e o Eraldo me disse para tocar algo que eu tivesse escrito. Respondi que nunca tinha escrito nada, mas que estava no processo de me permitir criar em vários âmbitos e que acreditava que, em breve, comporia uma música. Ele sorriu, disse "claro" e saiu.

Não tava brincando quando falei que essa história mexeu muita coisa dentro de mim.

Segundos depois, comecei a tocar umas notas e escrevi a música a seguir:


COMPOSTO Joga a folha E deixa decompor Em seu tempo A vida volta a ser amor

Nada que cai Que seca e sai Nada que cai É desperdiçado

Nada que vai Depois que vem Nada e ninguém Fica só no passado

Ande, se levante, meu amigo Temos trabalho a fazer Tudo que germina nos alimenta E nos ensina a viver

O que morre fica na gente E não é somente história pra contar Deixa nosso solo mais fértil Pra que um novo eu possa brotar

Joga a folha E deixa decompor Em seu tempo A vida volta a ser amor

Um tanto daqui Outro de lá Vou confiar Ver no que vai dar

Composto sou Com gosto ou sem Tudo que é meu Veio de alguém

Joga a folha E deixa decompor

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