Sobre como deixei de querer “largar tudo” e tenho caminhado para “abraçar tudo”.
*Texto publicado originalmente em 19/09/2017
Escrevo esse texto porque muitos amigos e conhecidos que estão insatisfeitos com algum aspecto de suas vidas têm vindo falar comigo sobre meu processo de transição e, pelas trocas que temos tido, penso que algumas de minhas experiências podem ser úteis como reflexão para mais gente.
Tenho consciência de que meu contexto social — círculos familiar, de amigos e profissional, histórico de educação e condições econômicas — teve e tem muita influência nas possibilidades que posso acessar em minha vida e que muita gente, no Brasil e no mundo, não tem os privilégios que tenho. Ainda que seja impossível dissociar esse contexto da minha individualidade, vou tentar fazer um relato pessoal o mais conectado possível com as necessidades e sentimentos que tive para que as reflexões sejam pertinentes independentemente do contexto em que você se encontre.
Há cerca de 6 anos, comecei a fazer pequenas revoluções que hoje enxergo serem muito essenciais para minha felicidade. Passei a prestar atenção no que comia, comecei a me exercitar com frequência através da prática de posturas de yoga e aprendi a importância do descanso para me manter saudável. Depois de algum tempo implementando isso em minha vida, eu acreditava estar equilibrado, com uma rotina saudável e feliz — tinha um bom trabalho, uma vida social ativa, não ficava doente nem tomava remédios, viajava com freqüência.
Foi nesse contexto que percebi em mim sensações de insatisfação com a vida e me deparei com uma vontade muito forte de “largar tudo”.
Desespero define esse momento.
Afinal, o que eu ia fazer na segunda-feira seguinte depois de "largar tudo"? O que me manteria ocupado se eu não estava suficientemente envolvido com nenhuma outra coisa para torná-la uma profissão?
Entendo esses medos como consequências naturais do estilo de vida que eu e grande parte da sociedade contemporânea levamos.
Eu trabalhava por pelo menos 8 horas por dia, tinha 1 hora de almoço e levava cerca de 1 hora para me deslocar para e do trabalho. Só nessa conta já iam 10 horas do meu dia. Praticava 1 hora e meia de posturas de yoga, respirações e/ou meditação praticamente todos os dias, pois mantenho isso como prioridade para a saúde e dava muito valor a dormir as 8 horas necessárias para me sentir em plenas condições físicas e mentais. Até aqui totalizei 19 horas e meia ocupadas de um dia de 24 horas.
Me restavam 4 horas e meia para fazer todo o resto que gostaria.
Nesse todo-o-resto eu gostaria de incluir desde coisas básicas da vida, como me alimentar e passar tempo com minha namorada, até aprender mais sobre as coisas que me interessavam — através de leituras, cursos, experiências, entretenimento — e que poderiam, talvez, vir a ser minha ocupação na segunda-feira depois de “largar tudo”.
É claro que o que ainda não era parte integrante da minha vida ficava pra depois.
Portanto, era natural que eu tivesse medo dessa minha recém descoberta vontade e, se eu ficasse no automático, era também muito provável que eu nunca me sentisse confortável para trilhar novos caminhos na vida.
Foi nessa época que fiz uma dinâmica na terapia que considero muito importante para ter conseguido me conectar com meus sonhos e desejos e dar os passos seguintes aos que já havia dado para executar mudanças que buscava.
*Vou detalhar os passos dessa dinâmica no fim do post para quem quiser fazer o exercício.
A dinâmica começou com uma simples pergunta:
Como você se vê daqui a cinco anos?
Eu, que não estava muito satisfeito com o mundo corporativo, reagi de cara e pensei “que baita pergunta de entrevista de emprego é essa?”, mas a pergunta não tinha nada a ver com quantas pessoas eu queria estar gerenciando no trabalho ou qual o salário queria ter depois desse período.
A ideia era sonhar, deixar a cabeça ir longe e me visualizar daqui a cinco anos em diversos aspectos da minha vida.
O primeiro passo, então, foi responder a essa pergunta em relação a como, em 5 anos, me via vestido, o que comia, como me transportava no dia-a-dia, como era minha casa e onde morava, como era minha rotina, minha vida social, quais viagens fiz, o que estudei, com que e onde trabalho.
O desafio não foi fácil.
Sabia de muitas coisas que não queria pra minha vida, mas percebi que não tinha muito claro o que de fato queria.
Se eu mal conseguia colocar em palavras como eu visualizava minha vida, como seria possível fazer isso virar realidade?
Com um pouco de atenção e reflexão sobre o tema, consegui desenrolar muitas ideias a partir dos meus ideais.
O segundo passo foi colocar em perspectiva meus sonhos frente a realidade que já vivia. O quão distante eu estava de cada uma dessas coisas que eu sonhava?
Aqui percebi que já havia caminhado em alguns aspectos durante os anos anteriores e que os aspectos nos quais eu estava mais distante do meu sonho eram os que mais estavam me incomodando no momento — e estes eram minha profissão e a autonomia que tinha para viver a meu modo (ou pelos menos descobrir meu modo de viver).
Terminado esse exercício, fui para o terceiro passo, no qual eu deveria fazer um planejamento temporal de como gostaria de me aproximar de cada um dos meus sonhos.
O desafio era pensar o que poderia ser feito em cada um desses aspectos em 5 momentos diferentes: agora (já!), daqui a 6 meses, daqui a 1 ano, daqui a 3 anos e daqui a 5 anos.
Aqui vale ressaltar que o objetivo desse exercício não é traçar um planejamento de vida e engessar o viver. Muito pelo contrário, afinal, temos de concordar que planejar tantos detalhes da vida é prato cheio pra frustrações, pois ela sempre vem mostrar que não temos controle de nada.
A ideia é simplesmente colocar-se em movimento já, agora, em busca do que acreditamos querer viver, e visualizar um caminho até nosso sonho.
Pra mim, o valor desse exercício esteve em dois principais pontos:
Eu estava sonhando no negativo — acreditava que não queria mais algumas coisas na minha vida, mas não tinha claro o que estava buscando. Refletir sobre isso me ajudou a tangibilizar o que buscava.
E eu sonhava coisas que aparentavam estar muito distantes da realidade em que vivia e, sendo assim, eu não conseguia dar nenhum passo na direção dessas coisas porque nada parecia resolver meu problema e meus sonhos seguiam sempre à mesma distância da minha realidade. Vi que poderia começar dando só um passo em direção às mudanças e ver como me sentia nesse novo lugar.
A partir desse exercício, percebi que apesar de eu não conseguir ir estudar yoga na Índia porque não tinha tempo suficiente, podia fazer um curso em São Paulo, encaixando isso em minha rotina.
Caiu a ficha de que apesar de eu morar em São Paulo, onde as coisas ficam distantes umas das outras e há muitos morros, o que dificultava minha locomoção de bike sem transpirar, eu poderia arranjar uma bicicleta elétrica e pedalar em quase 100% dos meus trajetos.
Me dei conta de que, apesar de não ter muito tempo no dia-a-dia para cozinhar minha comida e me aventurar no veganismo imediatamente, poderia fazer um curso de culinária vegana e escolher alguns sábados ou domingos para experimentar a ideia.
Me liguei que apesar de eu não conseguir ir passar meses em uma ecovila para saber como era essa vida, eu poderia ir passar 10 ou 15 dias para ter alguma experiência nesse sentido.
E essa lista vai embora…
Em suma, percebi que eu podia me desapegar dos ideais e me envolver com o que estava ao meu alcance.
Comecei a cuidar mais do meu tempo e ocupá-lo com as coisas que faziam parte dessa construção que eu estava desenhando.
Fins de semana viraram possibilidade de fazer cursos, ter pequenas vivências ou organizar atividades que me aproximassem das coisas que já sabia estar ao meu alcance. Noites eram tempo para práticas e eventos dos temas com os quais queria me envolver. Férias viraram oportunidades de imergir no que me parecia ser a vida que buscava.
Esse processo foi me mostrando novas possibilidades, que antes eu nem considerava, para construção do meu caminho.
Além de perceber que a vida que sonho deve ser cultivada diariamente, pouco a pouco fui me sentindo mais confortável com uma prática de vida que seguia outras lógicas, diferentes das quais eu estava acostumado.
Foi quando percebi que não queria mais “largar tudo” o que tinha, e sim “abraçar tudo” do mundo que eu estava desenhando e precisava de mais tempo para seguir construindo.
Aí eu já não tinha mais escolha: estava livre o suficiente, dentro de mim, para dar o salto necessário para ressignificar meu trabalho, que para mim foi (e é!) a parte mais desafiadora de se trabalhar nesse processo.
Aqui queria apontar um conceito interessante de liberdade, ao qual tive acesso através da Ana Thomaz:
“Ser livre não é poder escolher o que fazer. Liberdade é não ter escolha!”
Parece doido, né?
Consigo ter muita clareza desse conceito dentro de mim ao pensar no momento em que queria “largar tudo” e compará-lo com quando passei a caminhar para “abraçar tudo”.
Quando queria "largar tudo", eu tinha opções. Podia sair do trabalho, ir estudar, tirar um sabático ou até procurar outro trabalho. Mas eu me via cheio de inseguranças e medos, e me parecia que, ao fazer essa mudança, eu estaria sacrificando muitas coisas em minha vida — além de salário e todos os benefícios corporativos, muito provavelmente teria que mudar meus padrões de vida e abrir mão de muitas mordomias que tinha.
Ao caminhar na direção de "abraçar tudo", tinha claro que esse era o único caminho que eu poderia seguir. Era a única forma de eu me realizar e conseguir trazer meu presente ao mundo. E aí os benefícios corporativos e as mudanças de padrão de vida que viriam (e já começaram a chegar) não eram mais uma preocupação, pois tudo fazia parte do mesmo pacote de mudanças práticas que eu não tinha nenhum problema em encarar.
Hoje, revisitando meu processo e tentando identificar o que mudou na prática para que eu conseguisse dar passos que considero importantes, consigo ver que o principal foi a busca pelo que tô chamando de rotina sintrópica.
Aprendi sobre os conceitos físicos de entropia e sintropia através da Agricultura Sintrópica, de Ernst Gotsch.
Em termos nada teóricos, entropia mede a energia que se dissipa e se perde na execução de um trabalho. Já a sintropia mede a capacidade de um sistema de realizar um trabalho que, além de utilizar energia para acontecer, também gera energia para realimentar o sistema e permitir que mais trabalho seja realizado.
Identifico muita entropia na rotina que tinha (e muita na que ainda tenho) principalmente quando agia a partir de uma lógica de compensação.
Meu trabalho me gerava renda, mas tomava muito tempo, não satisfazia e me sugava energia física e mental. Pra compensar, acreditava que meu tempo livre tinha que ser absurdamente bem aproveitado.
Se saía no fim de semana, tinha que beber muito e ficar até amanhecer. No dia seguinte, estava podre e sem condições de viver plenamente. Quando viajava, não fazia as coisas com calma porque “só tinha aquele tempo” para viver tudo que queria e terminava a viagem mais cansado do que comecei. E imagino que existam muitas outras coisas nas quais aplicava a mesma lógica que nem tenho consciência.
Eu não percebia, mas o fato é que tudo isso me tirava ainda mais energia.
A busca por sintropia no manejo da terra é muito benéfico para a natureza. Como somos parte dessa mesma natureza, por que não tentar aplicar essa mesma lógica em nossa vida?
O exercício é simples e pode ser aplicado tanto nas grandes decisões sobre nossa rotina quanto nas pequenas, e o ponto principal dele é se conectar com as necessidades que estão vivas dentro da gente e como nos sentimos sobre as possibilidades que temos.
Por exemplo:
quando estava pensando em comprometer um final de semana por mês por um ano em um curso de yoga, ponderei se o tema era importante o suficiente pra mim a ponto de eu não pensar que estaria sacrificando meus finais de semana livres para estudar. Percebi que eu necessitava ter mais conhecimento e confiança na minha prática e conhecimento e me sentia estimulado com a ideia de curtir um fim de semana inteiro fazendo isso. Concluí que valia a pena desprender energia dessa maneira.
Mas também faço esse exercício para decidir sobre ir ou não a uma palestra que aparece numa noite de dia de semana e que provavelmente dificultará minha prática de yoga na manhã seguinte, bem como para decidir sobre rolês em geral com amigos, ponderando o significado do convite e minhas necessidades naquele momento.
Ter uma rotina sintrópica, portanto, é desenhar um dia-a-dia que me permite desprender minha energia em atividades que me geram energia de volta para continuar vivo, curioso e ativo.
É claro que isso tudo não é uma fórmula pronta e nem é possível chegar num ponto da vida no qual não existam mais esses conflitos. Mas, hoje, tento me manter conectado com minhas necessidades e faço essa reflexão sobre como gasto minha energia como uma prática constante.
Sigo aprendendo sobre minha própria rotina sintrópica e acho que esse processo não vai parar enquanto eu seguir vivo, pois em cada momento de nossa vida temos necessidades diferentes que ficam mais evidentes.
Acredito que, quando engajo em coisas que me geram energia para seguir vivendo, é natural que se alinhem as arestas dos pilares importantes da minha vida. Escutando minhas necessidades e agindo de maneira consciente a partir delas, dificilmente vou me desconectar de mim mesmo e, conectado, estou mais próximo da liberdade.
DINÂMICA DE CONSTRUÇÃO DE SONHOS PESSOAIS COMO EU ME VEJO EM CINCO ANOS?
1o passo: responder essa pergunta nos mais variados aspectos da vida.
Como estou me vestindo — qual roupa, onde comprei, quanto paguei, como e por quem ela foi feita, quais materiais foram usados?
O que como — quantas refeições faço, que tipo de comida, quem a prepara, de onde vem os alimentos?
Como me transporto — qual meio de transporte, quanto tempo fico em trânsito, como é o ambiente pelo qual me mexo?
Como é minha casa — qual o tamanho, quais os cômodos existentes, como a casa é decorada e como é sua arquitetura?
Qual minha rotina — com quem moro, que horas acordo, onde e com quem compartilho minhas refeições, quais os espaços que minha vida pessoal, social e profissional ocupa?
Que viagens fiz — para onde, por quê, com quem, por quanto tempo?
O que estudei — quais temas, cursos e experiências de aprendizado tive?
Com que trabalho — trabalho com uma ou mais coisas, quantas horas dedico a isso, como encaro o trabalho em minha vida?
Listar todos os outros aspectos que são relevantes para você
2o passo: ponderar a distância em que você se encontra de suas ideias e ideais
Em uma escala de 0 a 5, quão próximo você está de realizar seu ideal de cada um dos aspectos listados?
3o passo: planejar coisas a fazer para se desenvolver em cada um dos aspectos trabalhados em 5 momentos diferentes ao longo do tempo
Criar uma matriz, colocando os aspectos/ideias nas colunas (uma coluna para alimentação, uma para trabalho, uma para moradia, etc.)
Na mesma matriz, colocar os 5 momentos nas linhas. Os momentos são: agora, em 6 meses, daqui a 1 ano, daqui a 3 anos, daqui a 5 anos
Preencher todos os quadrados, contemplando todos os 5 momentos de cada aspecto e fazendo o exercício de sincronizar os sonhos, pois você estará se desenvolvendo em todos eles ao mesmo tempo
Terminado o exercício, é só começar a se mexer para executar as coisas que já podem ser feitas e aproveitar o processo. Se quiser conversar sobre e/ou tiver sugestões para a dinâmica, fique à vontade para me mandar uma mensagem no felipechammas@gmail.com.
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